Quando chegamos ao Xingu, em julho de 1967, para o início dos trabalhos da Meridional (United States Steel), uma figura lendária já era conhecida por todos - o Comandante Adão. Misto de aventureiro e mascate, tinha como principal atividade o comércio de peles de animais selvagens, principalmente de gato maracajá. Natural do Maranhão, havia constituído família em Altamira, onde era a base de seus negócios. Para ampliar a rede de fornecimento de peles, estimulara a abertura de pequenas pistas de pouso pelos seringais do Xingu e do Iriri, que eram visitadas regularmente com seu pequeno Cessna 170.
Talvez hoje, o desenvolvimento de nossa consciência ecológica dificultasse a aceitação de sua atividade e a sua integração em nosso grupo. Contudo, deve ser lembrado que a sua personalidade era bem mais rica e complexa que a simples imagem de um aventureiro nos possa dar. Possuía uma inteligência aguçada e uma coragem que contrastava com seu tipo franzino; sua honestidade, franqueza e lealdade eram atributos para que conquistasse amigos na primeira conversa. A grandeza de seu coração fez com que muitas vidas fossem salvas, graças à remoção gratuita de ribeirinhos doentes ou feridos para o hospital de Altamira.
No nosso primeiro voo, pouco conversamos - desconfiava do piloto e do avião. Mas, ao pousarmos na pequena pista do seringal de São Francisco do Xingu, já éramos amigos...

Poucos instrumentos no painel do Cessninha AOV
Conhecia como poucos os céus do sudeste do Pará e era um piloto nato. Com ele tive meu batismo de fogo e aprendi a conhecer cada acidente geográfico da região, a identificar cada rota por um simples sinal, como uma pequena clareira ou uma árvore seca que se destacasse das demais.
Começou a prestar serviços de apoio ao programa de exploração geológica em decorrência das deficiências apresentadas pela empresa de táxi-aéreo contratada no Rio de Janeiro. Mesmo sem poder assinar um contrato - por ser piloto amador -, foi gradativamente integrando-se a equipe e reduzindo a sua atividade de comerciante. Quando, no final de julho, a mudança da base de apoio para o Castanhal do Cinzento, no Itacaiúnas, nos levou à descoberta do ferro dos Carajás, já era amigo de todos e merecedor da confiança de todo grupo – geólogos, pilotos e mecânicos de helicóptero, e braçais. Praticamente passou a morar em nosso acampamento, ficando à nossa disposição com o seu avião, mesmo que passássemos dias sem voar. Contribuía com bons palpites para todo o programa e brigava pelos nossos interesses. Com as devidas proporções, foi o nosso "Dersú Uzalá", nos ensinando os segredos da região.
É muito difícil recordar os primeiros tempos de Carajás sem que uma ação importante e decisiva não tenha tido a sua participação.
Assim, as três viagens entre a ilha de São Francisco e Marabá, para se obter a autorização de uso da pista do Castanhal do Cinzento - o que foi decisivo para a descoberta de jazidas de ferro dos Carajás e de manganês de Buritirama - tiveram a sua participação.
No deslocamento do helicóptero do Xingu para o Itacaiúnas, no memorável voo de 31 de julho, que nos levou ao pouso na primeira clareira com canga de minério de ferro, na Serra Arqueada, ele foi nosso anjo da guarda, nos esperando com combustível em São Félix do Xingu e na aldeia dos Xicrin, no Cateté.
As primeiras viagens para Belém no seu Cessninha, conhecido carinhosamente por "AOV" (PT-AOV), foram inesquecíveis. Pelo fato da pista do Castanhal do Cinzento, encaixada entre serras, normalmente cobrir-se por neblina nas primeiras horas da manhã, os voos só poderiam ser iniciados depois das 10 horas, o que provocava a chegada a Belém na hora das torrenciais chuvas da tarde, nada agradável de enfrentar com o pequeno avião.

Amanhecendo a bordo do Cessninha AOV
A solução para o nosso amigo Adão era bastante simples: partia-se antes do sol nascer, tendo como orientação apenas uma lanterna balançada por alguém, na cabeceira da pequena pista do castanhal. O rolar, pelos 250 metros da pista até a separação do solo, durava uma eternidade. Mas no ar, mesmo sabendo da impossibilidade de retorno, a ansiedade inicial era substituída por uma paz muito grande. Seu avião tinha como instrumento de navegação apenas uma bússola; prevalecia a experiência e o instinto para que se chegasse ao destino, num voo de mais de 4 horas – houve tempo em que um Boeing da linha regular para Carajás demorava somente 45 minutos. Ainda me lembro de sua voz tranquila e segura, quando apontava o sol aparecendo no horizonte:
-Marabá tá pra lá e Altamira pra cá... Então, Belém tá no meio...
Invariavelmente cruzávamos o rio Tocantins sobre a cidade de Tucuruí, como aconteceu no voo destinado a telefonar ao chefe e amigo Tolbert, através da Radional, comunicando a possibilidade de que todas as clareiras, observadas nas fotos do Projeto Araguaia, fossem decorrentes da cobertura por canga de minério de ferro, como constatado na Serra Arqueada.
De volta ao Cinzento, foi com ele que realizamos o primeiro sobrevoo em todas as clareiras da Serra Norte, assim denominada um mês depois. O que foi observado, e que pode ser testemunhado pelas fotos existentes, deixava pouca dúvida sobre a grande semelhança com a cobertura de canga da Serra Arqueada. Pela primeira vez foi admirada a beleza das lagoas existentes. Ao sobrevoarmos a clareira, que depois seria denominada N1 (Serra Norte 1), mostrou uma área mais plana e disse com sua simplicidade:
- Se vocês vierem com o helicóptero e tirarem aquelas pedras soltas, eu consigo pousar...

Sobrevoo da clareira N4W com o Cessninha AOV, no início de agosto de 1967
Após os primeiros reconhecimentos com o helicóptero, isso foi feito. Surgiu o embrião da pista de pouso que, construída manualmente, permitiu todo o apoio dos primeiros trabalhos de Carajás, inclusive através de grandes aviões do tipo C-46 (Curtis Commander). Com a chegada dos primeiros tratores, no começo da pesquisa pela Amazônia Mineração, essa pista foi melhorada e um pouco ampliada. Esse acesso foi essencial tanto para a fase de pesquisa, como para o inicio das obras do Projeto Ferro, antes da inauguração do Aeroporto de Carajás, no final de 1981. Através dela, pequenos jatos e linhas regulares de voo trouxeram executivos, presidentes das grandes siderúrgicas mundiais, ministros e até um Presidente da República.
Foi quando mudamos o acampamento principal para a clareira Nl, em novembro de 1967, que seu entrosamento com o grupo mais se aprofundou. Com o seu jeito de ser, comunicava-se da mesma forma tanto com os nossos braçais, como com os geólogos e dirigentes de Pittsburgh que nos visitavam. Os gringos tinham uma especial admiração pela dedicação e capacidade de trabalho desse homem simples. Na visita da diretoria da Steel, foi o único brasileiro a ter o privilégio de viajar no Viscount da empresa, atuando como navegador no sobrevoo das clareiras de Carajás, orientando os pilotos americanos.

Viscount da United States Steel, onde Adão atuou como navegador durante o
sobrevoo de Carajás, com os diretores da empresa
Até mesmo situações simples, mas de grande significado, são lembradas com a sua marca. A cerveja que veio de Marabá, para a primeira comemoração de "Fim de Ano", dias antes das folgas do Natal de 67, foi mais bem saboreada graças à sua criatividade. Naquele fim de tarde, com a alegria costumeira e sob o inseparável chapéu de boiadeiro, declarou triunfante, ao descer do avião:
- Voei bem alto pra ela não esquentar... Ainda tá geladinha... - e estava mesmo...

A primeira cerveja de Carajás chegou bem geladinha...
No retorno de suas viagens particulares, às vezes trazia algum amigo para conhecer nosso trabalho. Mostrava tudo com mais orgulho que qualquer um de nós - pista de pouso, barragens acampamento, helicópteros... Sempre tentei entender o que o levara a se integrar tanto com a nossa equipe. Talvez tenha sido a sua única oportunidade de participar de um ambiente amigo e organizado... Talvez tenha avaliado, mais que todos, o significado do momento que vivíamos...

A primeira comemoração de fim de ano em Carajás
Em determinadas circunstâncias, éramos obrigados a fazer lançamento de rancho a partir do avião - para abastecer algum acampamento isolado ou atender companheiros perdidos, por pane do helicóptero, em clareiras ou sobre algum pedral de rio. A operação era empolgante tanto para quem auxiliava o lançamento no interior do avião - atento ao seu comando experiente -, quanto para os que tudo assistiam do solo.

Lançamento de carga no rio Itacaiúnas, com a jazida de manganês de Buritirama,
ao fundo
Adão voando ao lado do helicóptero, entre as clareiras N1 e S11
A ingenuidade típica do homem do sertão às vezes o traia. Na viagem que fizemos a Imperatriz, para estudar a possibilidade de essa cidade servir de apoio para o abastecimento do projeto, vimos um dos mais belos arco-íris, com o seu semicírculo perfeito bem sobre a confluência dos rios Araguaia e Tocantins. Ante minha afirmativa de que seria impossível atravessá-lo, apostou comigo e passou a dar toda potência ao pequeno motor... Na volta, prevaleceu a sua técnica de piloto: o teto era inferior a 50 metros e voamos até Marabá dentro da calha do rio Tocantins, competindo com a navegação fluvial.

Tolbert e Adão na pista de apoio da clareira S11
Possuía expressões próprias para cada acontecimento. Quando as condições atmosféricas impediam a conclusão de algum voo, voltava acabrunhado para o acampamento, não aceitando o fracasso:
- Hoje, de asa, só nhambu por baixo e Caravelle por cima...
Ao ouvir os trovões que sacudiam a quietude de Carajás:
- Te aquieta pai da coalhada!...
- Por que pai da coalhada? - perguntávamos.
- Porque o trovão faz chover, para o capim crescer e alimentar a vaca, que da o leite para fazer a coalhada...
Mas, sem dúvida, a expressão mais usada era "meretriz". Para demonstrar amizade ou para agredir, todos eram chamados de "meretriz":
- Descarta logo, meretriz!... - Durante os carteados noturnos.
- Passa a bola, meretriz!... - Nas peladas ao anoitecer ou nas tardes de domingo.
- Tá com medo, meretriz?... - Quando seu monomotor pipocava nos voos sobre a floresta.
- Já tá dormindo, meretriz?... - Entrando no tapiri e balançando a rede dos que já estivessem dormindo.

Adão entre as “feras” das peladas dos fins de tarde
No final de agosto de 1968, fui convocado para fazer a comunicação da descoberta de Carajás no Congresso Brasileiro de Geologia, em Belo Horizonte. Pouco antes de viajar, estive com ele em Marabá, num voo de demonstração de seu novo avião. O simpático "AOV" fora trocado por um mais potente e maior: um Cessna 180. Estava muito feliz com o progresso alcançado, e prometeu aos amigos um fim de semana em sua fazenda nas proximidades da ilha do Bananal. Na despedida, diante de minha ansiedade pela responsabilidade de falar em público pela primeira vez, foi o Adão de sempre:
- Vê o que a meretriz vai dizer!... Não vá deixar a gente passar vergonha...

O Cessna AOV pousando na pista da clareira N1
A viagem à ilha do Bananal nunca se realizou. Quando ainda saboreava o sucesso no congresso - muito mais pela importância da comunicação que pelo desempenho do palestrante -, fui abalado pela notícia de seu desaparecimento. Partira do seringal do Anfrízio, no Iriri, onde fora para resolver seus negócios particulares, e não chegara a Carajás. Tolbert também lhe dedicava grande estima e colocou toda a frota aérea que apoiava a Meridional nos serviços de busca. Dias depois, quando me preparava para o jantar de encerramento, nos salões do Automóvel Club, recebi a confirmação indesejada. Na viagem no ônibus noturno para São Paulo, senti pela primeira vez a dor da perda de um amigo verdadeiro...
O velho amigo pagou um preço por demais elevado pela troca do avião. Teve pane seca com um dos tanques cheio, pois ainda não estava familiarizado com os registros de troca. Mesmo assim, conseguiu colocar o novo avião, quase intacto, numa pequena clareira com cerca de 50 metros de diâmetro, e teria driblado a morte se não fosse atingido na cabeça por um galho de árvore, na aproximação para o pouso.
Sua morte consternou a todos, e a alegria no acampamento nunca mais foi a mesma. Durante muito tempo, sempre que visitávamos qualquer cidade ou lugarejo da região, seu nome era lembrado com saudade pelos moradores.
A Meridional prestou-lhe uma homenagem, batizando a pista de Nl com o nome de "Comandante Adão Coelho de Barros". As mudanças da administração e das pessoas, ao longo de tantos anos, fizeram com que esse nome jamais fosse utilizado.
Hoje, na clareira Nl, existe apenas o fantasma de um acampamento. A velha pista de ferro foi desativada e, em Carajás, ninguém mais sabe quem foi o Comandante Adão. O acampamento inicial foi totalmente destruído nos primeiros trabalhos da Amazônia Mineração. Os vestígios da vida e do trabalho, que lá existiam entre os anos de 67 e 70, estão restritos às ruínas da pequena barragem que servia para o abastecimento de água. O singelo monumento comemorativo dos 20 anos da descoberta de Carajás, erguido em 1987, também não existe mais...
Nas raras oportunidades que tenho lá voltado, quando consigo ficar em silêncio suficiente para ouvir os sons da natureza, reencontro as vozes e os risos daquela época... E quando a brisa de Carajás é substituída pelo vento geral - que ele tanto amava -, entre o estalar de folhas e pequenos galhos secos, tenho a certeza de escutar a mesma voz zombeteira:
- O que a meretriz ainda tá fazendo aí?...
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