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Lembranças de um voo geofísico clandestino

Uma história de Breno dos Santos, o Descobridor de Carajás

Lembranças de um voo geofísico clandestino
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Em muitas entrevistas, sempre perguntam se as ações pioneiras em Carajás tinham algo de “Indiana Jones”.  Isso de fato ocorria em alguns momentos, quando a equipe tinha que superar os seus medos naturais, para que o programa avançasse. No início eram muitos os receios – do desconhecido, de voar nos velhos helicópteros, de animais selvagens, do encontro com indígenas arredios, que ainda existiam -, mas logo a rotina fez com que tudo fosse aceito com naturalidade.

Mas sempre tem sido lembrado que, na realidade, eram tempos de “Brancaleone”. Quem viveu os anos 60 deve lembrar-se das peripécias de Vittorio Gassman com o seu “Incrível Exército de Brancaleone” que, em tempos das Cruzadas e da peste na Idade Média, tentava superar as dificuldades com muitas improvisações.

Como havia muito a se fazer, e com inúmeras dificuldades, a improvisação virou rotina. Tomavam-se decisões que, sob a cultura administrativa e a legislação atuais, seriam consideradas verdadeiras aberrações gerenciais. Mas só dessa forma foi possível avançar rapidamente nos tempos pioneiros da exploração geológica de Carajás.

O “espírito brancaleônico” foi responsável por se voar em pequenos aviões e helicópteros monomotores; por lançar carga em pequenos aviões; por construir uma pista clandestina na clareira N1, que apoiou todos os trabalhos na região até o início dos anos 80; por abrir uma galeria de pesquisa sob a canga, apenas quatro meses após a descoberta, confirmando a sua natureza hematítica bandada; por determinar normas rígidas para que um cabaré pudesse ser instalado nas proximidades do acampamento de Buritirama...

Esse “espírito brancaleônico” ainda resistiu por algum tempo na Docegeo, com a abertura de galerias de pesquisa nos depósitos de cobre do Salobo e do Pojuca; com a execução de profundos e apertados poços de pesquisa, nos platôs com bauxita de Almeirim e de Paragominas; com a criação, por sua iniciativa, de linhas regulares de ônibus e de voos para Carajás; com o transporte e a fundição do ouro de Serra Pelada, no quintal de seu laboratório em Belém...

Tudo isso seriam atitudes absurdas e improváveis nos dias de hoje...

O voo geofísico realizado pela LASA, em agosto de 1967, mediante acordo do Tolbert com o seu amigo Webster, geofísico responsável pelos levantamentos, caracteriza bem as decisões daqueles tempos.

A LASA realizava levantamentos com um velho Douglas DC3 da Cruzeiro do Sul, equipado com magnetômetro, atuando para a PETROBRAS no Maranhão, na Bacia de Barreirinhas. Mas a aeronave teve que se deslocar a Belém, para uma revisão rotineira. Como em todo limite de revisão há uma certa tolerância, essa disponibilidade foi utilizada para um “contrato” com a Meridional.

O objetivo de Tolbert era bastante claro: tentar encontrar alguma anomalia magnética associada aos depósitos de manganês do Sereno, em pesquisa pela CODIM (Union Carbide), e de Serra do Navio, onde haviam as minas da ICOMI, que pudesse servir de guia para a descoberta de outras ocorrências de manganês.

Durante quatro dias, entre 17 e 20 de agosto, sacolejamos no velho DC3, com um total de 29 horas voadas, sendo 16 horas com voo aeromagnético de baixa altura, ao redor de 300 metros sobre a copa das árvores.

O velho DC3 da Cruzeiro do Sul, no início do levantamento, no aeroporto de

Val-de-Cans, em Belém (17 de agosto de 1967)

Tolbert e o geofísico Webster, planejando as linhas de voo (17de agosto de 1967)

Como o voo balançava muito, para os inexperientes, como eu, eram necessárias boas doses de Dramin.  No voo do Amapá, o amigo Nogueira recusou a minha ajuda, respondendo que não estava grávido, e passou mal durante todo levantamento. Quando tentou tomar o remédio já era tarde, e com resultado desastroso...

O DC3 estacionado no aeroporto de Marabá, durante o frustrado primeiro voo

(17 de agosto de 1967)

Tolbert camuflado no aeroporto de Marabá, para não dar a chance de ser

identificado por geólogos da CODIM (20 de agosto de 1967)

O primeiro dia foi frustrante, pois a viagem ficou restrita a ida e a volta de Marabá. O equipamento travou e não foram suficientes as sacudidas do comandante com o DC3, para tentar liberá-lo.

No segundo dia, voltamos a Marabá. Como eram tempos de 007, Tolbert decidiu camuflar-se para que eventualmente não fosse identificado por algum geólogo da CODIM. Não admitiu nem sair do DC3.

Cabine do velho DC3, com os equipamentos de geofísica (20 de agosto de 1967)

Detalhe dos equipamentos para registro do levantamento geofísico

(20 de agosto de 1967)

O levantamento começou a partir de Marabá, abrangendo as atuais serras do Sereno, Leste, Norte, Sul, Pium e parte do conjunto das serras do Cinzento.

Tolbert ainda não havia demonstrado interesse pelas ocorrências de minério de ferro, mas nós da equipe de campo já estávamos bastante motivados pela sua importância, pois havíamos realizado voos de baixa altura sobre as clareiras de Serra Norte, identificando a sua semelhança com a da Serra Arqueada.

Primeira imagem das elevações Três Irmãos, que correspondem à extremidade

leste da Serra Arqueada, ao sul da Serra Sul (18 de agosto de 1967)

 

Quando o voo atingia as clareiras, o operador dos registros do magnetômetro começava a rir, pois era necessário mudar a escala para que a agulha do registro não saísse do visor. Para a minha grata surpresa, tudo se repetia também na Serra Sul, quando pela primeira vez tive a oportunidade de sobrevoá-la.

Savanas de Macapá, com a estrada de Porto Platon e os trilhos da Estrada de Ferro do

Amapá (19 de agosto de 1967)

No terceiro dia voamos no Amapá. Retornar à Serra do Navio com um DC3 foi momento de grande emoção para mim. Lá havia vivido três anos e iniciado a minha vida profissional.... Lá havia iniciado a minha família, onde nascera a filha Sandra.... E há apenas seis meses a havia abandonado, e com muitas saudades .... 

Serra do Navio – Rio Amapari, com o balneário Cachaço, e vilas residenciais

(19 de agosto de 1967)

 

Serra do Navio – Vilas residenciais e mina T20 (19 de agosto de 1967)

Mas foi o voo mais longo e cansativo. Durante quase 6 horas balançamos sobre o pré-cambriano do norte do Amapá, até a Serra do Tumucumaque.

Serra do Navio – Área Industrial e minas T20, T4 e T6 (19 de agosto de 1967)
Sobrevoando a Serra de Tumucumaque, no norte do Amapá (19 de agosto de 1967)

No retorno a Belém, a partir de Macapá, todos estavam muito cansados, e quando o ar ficou mais fresco, após o DC3 atingir a altitude de cruzeiro de 3.000 metros, naturalmente adormecemos. Algum tempo depois, já sobre a ilha do Marajó, acordei sob um silêncio total. Todos ainda dormiam.  Para a minha surpresa, o comandante, adormecido, estava ao meu lado; maior foi a minha surpresa ao verificar que em outro assento o copiloto fazia o mesmo. Rapidamente dirigi-me à cabine de comando, que ficava bem próxima... Maior ainda foi a surpresa por ter sido recebido pelo sorridente telegrafista no comando da aeronave.... Momento bem “brancaleônico”...

No quarto dia retornamos à futura Serra dos Carajás, pois ainda assim não havia sido batizada. Foram realizadas novas linhas de voo norte-sul, intercaladas com as anteriores.

Painel e comandos do Douglas DC3 (19 de agosto de 1967)

Normalmente, ficava na cabine de comando para melhor apreciar a rota de voo, e relacionar possíveis anomalias com o terreno. O comandante sempre manifestava a sua preocupação quando passávamos dos vales para as serras, que atingíamos com voos rasantes nas suas bordas. Sempre comentava que era o momento de maior risco, pois se houvesse problema com um dos motores, não seria possível atingir o topo da serra, e a tentativa de retorno, com uma curva fechada, também seria fatal com o estolar de asa, pela falta de sustentabilidade da aeronave.

Abastecimento do DC3 no antigo aeroporto de Marabá, antes do retorno a Belém

(20 de agosto de 1967)

Felizmente, isso não aconteceu. Mas no final do último dia, quando já sobrevoávamos Belém, um dos motores parou. Pousamos com um único motor, mas todos tiveram que empurrar o velho DC3, na pista de Val-de-Cans, pois não era possível taxiar com um único motor...

Todos empurrando o DC3, inclusive Tolbert e Webster, na pista de Val-de-Cans, em

Belém (20 de agosto de 1967)

Felizmente os deuses continuavam do nosso lado, naqueles tempos “brancaleônicos”...

Alguns meses após o levantamento, Tolbert contratou um geofísico canadense para fazer a sua interpretação. O geólogo José Thadeu Teixeira, recém contratado participou desse trabalho.

No final, Tolbert confidenciou-me decepcionado que havia contratado o geofísico para encontrar anomalias associadas aos depósitos de manganês, e que ele havia apenas comentado que havia anomalias magnéticas sugestivas de rochas máficas e ultramáficas, potenciais para depósitos de cobre e de níquel...

Mais uma vez, os deuses ficaram do nosso lado, e o geofísico estava certo... 

 

Niterói, 15 de maio de 2017

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Breno Augusto dos Santos

Publicado por:

Breno Augusto dos Santos

Breno Augusto dos Santos é um dos maiores geólogos da história do Brasil. Conhecido como "Descobridor de Carajás", é um profissional histórico e foi o grande vencedor do prêmio Pioneiros da Mineração 2024, entregue pela revista Brasil...

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