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Colunas / Coluna Breno dos Santos

Pantaleão do Itacaiúnas

Uma história de Breno dos Santos, o geólogo que descobriu Carajás

Pantaleão do Itacaiúnas
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O acampamento era digno de um colonizador inglês, uma grande clareira fora aberta, preservando-se as palmeiras de babaçu. Por uma trilha na floresta, atingia-se o heliponto, na margem do Itacaiúnas. Os tapiris haviam sido construídos em semicírculo, acompanhando a meia-encosta da colina, que fica na base da serra de Buritirama. O que estava situado na parte mais elevada, em posição de destaque, servia como escritório e alojamento do staff — geólogos, pilotos e mecânicos de helicóptero e administrador.

Uma clareira na selva, um acampamento digno de um colonizador inglês

Numa gostosa manhã ensolarada, quando preparava relatórios para serem enviados ao Rio, com surpresa vi uma mulher entrando no acampamento — era a primeira vez que isso acontecia. "Índio", caboclo cheio de malandragem, que preferia os serviços de apoio no acampamento — limpeza, lavagem de roupa, carregamento do helicóptero, etc. —, para fugir do mais pesado nas frentes de pesquisa, antecipou-se, com ar de expectativa e gozação:

          - Dotô, é a Irene de Marabá. Ela que falar com o senhor...

        Ainda surpreso, pedi que se aproximasse.

          - Bom-dia Dotô... Vim com as minhas meninas de Marabá e quero sua permissão para montar meu barraco perto do acampamento.

        - Bom-dia, Dona Irene... — tinha que ganhar tempo para pensar rápido, pois a situação era totalmente incomum.

Raimundo tinha sido um companheiro leal desde os tempos de Serra do Navio, no Amapá. Mecânico faz-tudo, era figura de grande serventia em qualquer acampamento, pois não havia problema para o qual ele não encontrasse solução, nem que fosse apenas temporária. Motores de popa, bombas e geradores, tudo dependia da sua atenção para o bom funcionamento. Também era um aplicado esportista, sempre presente nas peladas e no vôlei e, principalmente, vencedor de todas as corridas disputadas em Carajás, nas primeiras festas comemorativas realizadas no acampamento de N1.

Mas possuía outra característica marcante: era um "Don Juan" nato, apesar do seu jeito aparentemente simplório. Do Xingu a Paragominas, por onde passamos trabalhando nos projetos da Meridional e da Docegeo, deixou corações estraçalhados e, em alguns casos, até herdeiros. Irene, mulher-dama com casa montada em Marabá, era a paixão da vez. Não resistiu à distância do amado e tudo largou, levando a sua equipe de colaboradoras para ajudar na subsistência.

Pensava no perfil do amigo e no sacrifício enfrentado por essa mulher, motivada pela paixão, enquanto buscava uma saída que não ferisse demais as rígidas normas seguidas nos acampamentos, naquele ano de 1969. Depois de criar coragem:

          - Está bem Dona Irene... Não vou deixar você perder a viagem, mas temos que estabelecer certos compromissos... — tentava avaliar o espaço que tinha para negociar.

          - Eu aceito o que o Dotô determinar... - foi a resposta incondicional.

          - Tudo bem, mas os compromissos vão ter que ser respeitados também pelos empregados. Com eles eu converso depois... — agora já estava seguro da situação.

          - O que o senhor quer que eu faça?... - era ridículo o tom cerimonioso para aquela situação.

           - Em primeiro lugar, seu barraco vai ter que ser construído rio abaixo, e depois da boca do igarapé Deserto — havia uma preocupação descabida e hipócrita em se estabelecer completo isolamento e em não comprometer a qualidade da água usada no acampamento.

        - Está bem... Da minha parte concordo — continuando, incondicional.

            - Quanto aos empregados, vou definir que somente poderão sair do acampamento nas horas de folga. Qualquer empregado que desrespeitar essa regra, chegar atrasado ou bêbado, será demitido imediatamente. Também não poderá ser usado o barco a motor da companhia. Vou precisar de sua ajuda, pois se os problemas forem muitos, você terá que ir embora – decretei implacavelmente, sob a autoridade dos meus vinte e oito anos.

O compromisso geral foi logo aceito e com muita alegria. No dia seguinte, o barraco estava pronto: todo verde, com paredes e cobertura feitas com folhas de babaçu. Certamente, na primeira noite, nossa equipe deve ter ajudado na construção. A clareira, próxima do rio, era pequena, difícil de ser notada, tanto de barco como de helicóptero.

A partir da inauguração da casa de Irene, cessou o burburinho noturno no acampamento, que agora passou a fazer jus duplamente ao seu nome de Deserto – pelo igarapé e pela solidão. Apenas o staff permanecia. Até o “Chico”, macaco-prego que era o nosso mascote, notou a diferença.

Uma picada larga, quase uma “avenida”, foi aberta a partir do acampamento, para permitir que os quinhentos metros, que os separavam de seus sonhos e prazeres, pudessem ser vencidos com segurança, em qualquer hora e situação. A travessia do igarapé Deserto também não foi problema: todos tiravam suas roupas – na ida e na volta – e atravessavam, com água pelo peito, braços erguidos para não molhar os seus pertences. Acabou sendo uma garantia para que todos chegassem limpos para as noitadas, e da mesma forma retornassem ao acampamento.

Além da base na margem do Itacaiúnas, que coordenava na época as operações de pesquisa de manganês, havia diversas frentes ao longo da serra Buritirama. Uma picada rudimentar tinha sido aberta, com mais de vinte quilômetros, para permitir o apoio numa emergência que fosse motivada pela falta prolongada do helicóptero. Sem que determinássemos, essa picada foi melhorada, para que as equipes de pesquisa também pudessem visitar a casa mais famosa da região, o que era possível apenas nos fins de semana. Chegavam a caminhar dezenas de quilômetros, em busca de um pouco de emoção e de ilusão.

Os solteiros, de um modo geral, passaram a gozar as folgas dos domingos no campo, em lugar de acumulá-las para um período maior na cidade. Muitos ficaram meses sem sair do acampamento. Não sei o porquê, mas os tripulantes dos helicópteros passaram a denominar o local de “Casa da Madame Polanski”, que aos poucos se transformou em ponto de “atração turística” para todos que nos visitavam, de Pittsburgh ou do Rio de Janeiro.

Depois de algum tempo, começou a haver pressão dos geólogos e dos tripulantes dos helicópteros, para que pelo menos uma visita nossa fosse realizada. Questionou-se muito o argumento de que não nos deveríamos expor a um ambiente promíscuo com os demais empregados. Discussões profundas foram feitas para o planejamento da visita e algumas decisões foram tomadas: restringir-nos-íamos a beber e divertir, sem nenhum contato íntimo, mas cada um pagaria o “michê” regulamentar, e, finalmente, iríamos com o barco a motor, decisão prepotente para mostrar o status do grupo.

Otávio, o administrador-enfermeiro, coordenou as providências necessárias e “Índio” foi o nosso porta-voz com a equipe de Irene. A proposta foi aceita com tranquilidade, mas ficou a expectativa sobre o quê aconteceria de fato.

Tudo acertado, chegou a noite esperada. Ainda estávamos no “inverno” amazônico e, quando o barco descia o rio, uma chuva fina começou a cair. Fomos recebidos em grande estilo, com muita festa. As meninas estavam todas bem arrumadas, com as melhores roupas e enfeites. Apesar do calor da recepção, nosso grupo sentia-se deslocado, sem naturalidade. Para ajudar na desinibição, havia como bebida apenas conhaque de alcatrão.

O barraco era constituído de pequenos cômodos, quase que corredores, separados por paredes de palha. O maior, na parte central, possuía uma cama de casal, que Irene trouxera de barco de Marabá, para melhor curtir o seu amado. Era o único móvel existente; nos demais cubículos, apenas redes.

Como sempre acontece num grupo que tenta disfarçar a timidez, alguém quis mostrar-se mais avançado e sugeriu uma transa entre duas mulheres, ou “sabão”, como se chamava na época. Não houve espanto algum e a dupla foi escolhida entre elas, aparentemente em função da maior experiência. O lado feminino comportou-se com naturalidade, mas entre nós houve alguns empurrões, na busca de um melhor lugar ao redor da cama. Os mais prevenidos portavam até lanternas, para iluminar o palco de suas fantasias e taras.

No grupo havia um ótimo mecânico de helicóptero, mas que só pensava “naquilo”. Contavam várias histórias a seu respeito, algumas bastante estranhas, como a de que carregava um arco-de-pua na mala, para “frestar” o quarto vizinho nos hotéis. Quando em trânsito pelas grandes cidades, procurava sempre ficar ao lado do apartamento das aeromoças, o que não era difícil de descobrir entre a fechada confraria de tripulantes.  Havendo porta de intercomunicação, logo que chegava fazia um furo em posição estratégica, cobrindo-o com chicletes até a hora noturna e observação. Ele nada negava, e as suas conversas diárias contribuíam para justificar a fama.

“Índio”, Raimundo, Gilberto Lyrio,

Irene e uma “menina”, em frente

à casa dos sonhos

Quando o espetáculo começou a esquentar, o mecânico começou a ficar inquieto. A tentação da sensualidade das meninas e das formas arredondadas rebolando na sua frente era muito grande. Até que:

            - Não tô aguentando!... Não vai dar para cumprir o trato... – disse desculpando-se a atracando logo a que estava mais perto, antes que alguém o recriminasse.

O grupo, que havia recuperado a naturalidade, tornou-se novamente encabulado e, aos poucos, um a um foi deixando o cenário do espetáculo. Espalhamo-nos pelo barraco, liberando a molecagem de cada um, e nos distraíamos perturbando uns aos outros. De vez em quando, ouvíamos gemidos mais fortes que vinham do quarto principal.

Depois de algum tempo, já estávamos cansados daquela situação. Os carapanãs começaram a incomodar e o conhaque de alcatrão nos tinha deixado mais enjoados que alegres.  Pagamos nossas taxas e fomos acompanhados pelas meninas até o barco.

Ao nos comprometermos com o pagamento mesmo sem transar, acreditávamos que nosso gesto seria bem recebido por todas, pois ganhariam sem trabalhar. Mas havíamos nos descuidados dos mistérios da alma feminina: nenhuma mulher jamais perdoa a sensação de ter sido rejeitada, seja qual for a situação. Foi só o barco se afastar da margem, para ouvirmos em coro o desabafo despeitado:

            - Pagaram e não treparam!... Pagaram e não treparam!... Pagaram e não treparam!...

Ainda chovia... Aos poucos os gritos de protesto foram sendo abafados pelo ronco do motor de popa... Durante um longo período, aguentamos a gozação da peãozada a respeito do nosso comportamento. Para eles, era muito difícil imaginar que alguém pudesse pagar sem transar, pois, sempre buscavam a situação oposta.

Algum tempo depois, numa tarde de sábado, um dos geólogos saiu de barco, aparentemente para pescar. Na hora do jantar estava sem os óculos e o inseparável boné de couro... E não parava de rir. Depois de muito mistério, satisfez a nossa curiosidade, contando o ocorrido. Não havia resistido à tentação de convidar uma das meninas para passear de barco, e parara num remanso do rio. Descuidou-se do controle do barco, que seguiu rio abaixo, totalmente desgovernado até as corredeiras. Enquanto tentava dar partida no motor, naufragaram, felizmente sem maiores consequências. 

  O nosso templo do prazer continuou como anexo do acampamento por alguns meses, até julho, quando mudamos nossa base para Grande Praia, no rio Tocantins – partíamos para novas buscas, na tentativa de descobrir manganês na serra Olímpia, no alto rio Cajazeiras. Mas enquanto as tivemos como vizinhas, foi um período de grande calma, sem grandes incidentes, marcado por excelente moral e ótimo relacionamento entre toda a equipe. A presença feminina suaviza os homens, atuando com bálsamo, mesmo nas situações de trabalho e de pouco conforto.

Anos depois, ao ler mais uma obra de Vargas Llosa, diverti-me bastante com as peripécias do capitão Pantaleão Pantoja, extremamente dedicado no trato de problema semelhante na Amazônia peruana. E, com saudade, lembrei-me dos tempos que em nosso trabalho – e na vida de alguns – havia uma “Casa de Irene”.  

 

 

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Breno Augusto dos Santos

Publicado por:

Breno Augusto dos Santos

Breno Augusto dos Santos é um dos maiores geólogos da história do Brasil. Conhecido como "Descobridor de Carajás", é um profissional histórico e foi o grande vencedor do prêmio Pioneiros da Mineração 2024, entregue pela revista Brasil...

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