O veneno jogado na calada da madrugada da forma mais vil e traiçoeira destruiu plantações de banana, macaxeira, abóbora e acabou com o sustento de uma família que vive às margens do Rio Tocantins, já na região do Lago. Foi acordar pela manhã e ver o veneno jogado nas plantações, veneno que matou toda uma produção e quer forçar uma família a abrir mão de tudo e ir embora para outro lugar. Essa é uma história entre tantas que se repetem em uma região de intensa disputas por terra.
As obras da hidrovia Araguaia-Tocantins ainda nem começaram, mas já estão gerando especulação imobiliária e acirrando disputas por terra no sudeste do Pará. O derrocamento do Pedral do Lourenço pretende viabilizar a navegação no Rio Tocantins mesmo nos períodos de seca, o que facilitaria a escoamento de produções minerais e rurais. Mas, em troca, impactos quase incalculáveis recairão sobre as famílias que vivem às margens do Rio Tocantins. Por conta deste impacto, as famílias deverão ser indenizadas e é de olho nisso que os grandes latifundiários estão.
O Gazeta Carajás recebeu denúncias feitas por moradores da região de que fazendeiros estão forjando documentos para aumentar suas áreas até as margens do Rio Tocantins. Desta forma, quando forem feitas as desapropriações de terra, o fazendeiro também será indenizado. E claro, quanto maior a área, mais gorda é a indenização.
Por conta disso, pequenas propriedades estão sendo envenenadas e seus moradores estão sendo intimidados. A estratégia é vencer pelo medo quem não tem como se defender e obrigar as famílias ribeirinhas a deixarem suas casas por valores ínfimos.
Um relato de coragem
O Gazeta entrevistou Ademar Ribeiro, morador das margens do Rio Tocantins e presidente da Associação das Populações Organizadas Vítimas das Obras no Rio Tocantins e Adjacências, a APovo. A organização possui mais de 18 mil associados, que vão desde Marabá, descendo pelo rio, até o município de Barcarena.
Ademar diz que o momento é tenso e que os povos ribeirinhos, que habitam as margens do Tocantins há décadas, estão sofrendo repressões dos grandes latifundiários. “Nosso povo está sofrendo, foi expulso, foram derrubadas barracas, como aconteceu em Marabá, no Lago dos Macacos. Na Vila Deus é Fiel, em frente a Itupiranga, tem umas famílias que estão lá há muito tempo e tem um cara dizendo que a área é dele.”
O mesmo, conta Ademar, aconteceu na Ilha Proibida, que fica no 19 já no Lago de Tucuruí. Casas foram queimadas, famílias foram expulsas e, claro, veneno foi jogado nas plantações. As pessoas deixaram o local com medo, pois homens armados chegavam sempre ao local.
O presidente relata também casos parecidos na Vila Caputeua e na Vila Pederneira, onde funcionou o primeiro Forte de Alcobaça, local que mais tarde se formou Tucuruí. De acordo com ele, são famílias ameaçadas pela gana dos poderosos e sofrem com as decisões de autoridades. “O juiz agrário que fica em Marabá termina pegando qualquer documento que o fazendeiro entrega, que nem é título, e dá reintegração de posse. E não é só o juiz agrário, o juiz da primeira vara também, o juiz de pequenas causas. Nós estamos buscando uma forma, já tivemos uma reunião com o Ministério Público Federal, para resolver essa situação. Porém, agora esses dias nós tivemos uma desembargadora, que é de Marabá, e disse que a área é federal e passou pra justiça federal. Ela entendeu que a terra é da União e quem tem que cuidar é a esfera federal.”
Ademar segue o seu relato e afirma que, como as terras são federais, os artigos da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) preveem que elas são destinadas às comunidades tradicionais para o uso sustentável. “As comunidades plantam cacau, açaí, mangueira, seringa, que acaba virando uma espécie de mata e há preservação do meio ambiente.”
Para Ademar, a Delegacia de Conflitos Agrários favorece apenas um lado da disputa. “A Deca não contribui para a classe ribeirinha, para a classe trabalhadora. Pelo contrário, constantemente vem o representante da Deca e se reúne com fazendeiro. Era pra ter ido falar com a gente, mas não foram. E colocaram que uma parte desmatada pelo fazendeiro foi feita pelo ribeirinho. Não é verdade, o ribeirinho preserva.”
O presidente da APovo relata o caso de um fazendeiro que forjou documentação para ampliar suas áreas em 600 metros para chegar até a margem do rio justamente para ser beneficiado pela hidrovia. No entanto, a área em que a documentação foi registrada é da União e só pode ser utilizada pelas comunidades tradicionais para o uso sustentável.
Histórico conflito no sudeste do Pará
Com conhecimento de causa de alguém que vive na região há tantos anos, Ademar fala sobre o histórico conflito agrário no Pará. O ribeirinho relata que já sofreu tentativas de homicídio, levou quatro tiros e explica a raiz dos problemas na região. “Nós percebemos que todos esses conflitos acontecem porque muitos latifundiários pegaram áreas do Pará quase todo, áreas que são da união que não tem documento, e dizem que são suas. Aí eles pegam documentos de outras terras, jogam em cima, se dizem donos e aí tem o conflito.”
Ademar, no entanto, diz que há soluções para o problema. “O que nós pedimos é que os órgãos competentes, a SPU, ele comece a assumir o seu papel, que é fazer demarcação: onde é área particular e onde é área da união, onde está o povo ribeirinho. O povo ribeirinho nunca teve a oportunidade de se regularizar, mas esse cara que vem lá de fora, o fazendeiro, tem uma facilidade de ficar legal. A dificuldade nossa é muito grande, precisamos que a SPU faça esse mapeamento, faça essa demarcação, veja onde está a área do fazendeiro e a nossa. Se os órgãos competentes começassem a fazer esse trabalho, ajudaria muito na situação agrária, que já se arrasta há tanto tempo.”
Ademar relatou uma história em que viveu recentemente, quando queimaram casas de pessoas na Ilha Proibida. De acordo com ele, o delegado não queria fazer boletins de ocorrência para todos os denunciantes, mas apenas um. “Os delegados que vêm não têm compromisso com a população, não resolvem a situação.” Ademar sobe o tom ao falar da Deca. “A delegacia vem dizer que o ribeirinho é invasor, mas como é invasor se ele nasceu, se criou e nunca saiu daqui? Que diacho é isso? Quem é invasor mesmo na história?”
O presidente destacou ainda que a situação vivida pelos ribeirinhos é parecida com a enfrentada por indígenas. “. O nosso povo não é diferente dos índios, nosso povo nasceu e se criou às margens do Rio Tocantins. Não somos pessoas com pretensão à violência. São pessoas que vivem da pesca, da plantação de açaí, da plantação de mandioca, não desmata muito e sempre preserva a Amazônia."
“Quem é que tá dando as terras pra esses caras? Queremos uma avaliação nesses documentos pra saber se está tudo certo. Nós somos daqui, estamos na nossa casa e estamos sendo colocados como invasores?”
Os impactos do derrocamento do Pedral do Lourenço
O ribeirinho volta sua fala para um problema que já foi muito falado, mas que quase nenhuma solução foi apresentada: os impactos para as famílias que vivem às margens do Tocantins por conta das obras de derrocamento do Pedral.
De acordo com ele, o problema existe, mas os órgãos federais não reconhecem os impactos que as famílias vão sofrer. “Eles não lembram que esse rio é de onde nós tiramos o nosso sustento. Nós são temos a margem do rio. Agora vão quebrar o pedral do rio e os peixes vão migrar para outro lado e nós estamos ficando sem o nosso sustento. Eles dizimam a cultura de um povo, eles espalham a população, assim como fizeram com a barragem. Deram uma micharia pra esse povo, que ainda paga a energia mais cara do planeta. Que mundo é esse que a gente vive? Que nação é essa que a pessoa não tem direito no que é dele?
A situação citada por Ademar é mais um impasse na obra da hidrovia. Em março, o Ministério Público Federal recomendou a suspensão da licença prévia para a obra alegando que o estudo de impactos ambientais feito pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit) têm omissões e insuficiência de dados. Não há, por exemplo, uma análise detalhada sobre todas as comunidades ribeirinhas que serão impactadas, bem como não há detalhes sobre espécies de peixes presentes na área afetada ou um plano de contingência em caso da mudança extrema da qualidade de água, além de outros problemas.”
Quanto a situação das famílias, haverá uma audiência pública no dia 23 de junho para debater a situação das comunidades em Tucuruí. Ao todo, mais de 80 mil pessoas serão impactadas pela obra.
Relato de tristeza e dor
O Gazeta Carajás também conversou com a matriarca de uma família que foi, na prática, expulsa de sua terra pela ganância de um latifundiário. A mulher atendeu gentilmente ao pedido do jornal, mas pediu para que seu nome fosse preservado. Ela tem medo. Aqui, a chamaremos de Maria.
Maria chegou em Tucuruí há 43 anos quando tinha apenas 14 anos. De família ribeirinha, a jovem começou a trabalhar na terra muito cedo: quebrou coco, cortou cana. “Essa é minha origem, o que eu sei é trabalhar.”
Ela explica que sempre soube que a área em que morava e trabalhava pertencia à união, portanto era do povo brasileiro. Por vários anos, Maria e sua família viveram em paz na localidade, plantaram, colheram, criaram suas galinhas, faziam farinha; a terra era o sustento.
A paz durou até junho de 2020, quando ela e sua família começaram a ser ameaçadas. Ela relata que um fazendeiro poderoso havia comprado toda a área e que dizia para quem quisesse ouvir que tiraria todas as 11 famílias que estavam na localidade. “Eu nunca imaginei que iam me tirar da minha casa. A gente cuidava tão bem, a gente preservava. Acho que as pessoas passavam e nem sabiam que tinham moradores lá dentro, pois as nossas casinhas eram lá dentro e tinha as nossas plantações. Era um lugar lindo. A gente trabalhava com muito cuidado.”
Ela relata que sua família viveu momentos de puro terror no lugar que mais amavam. Homens vestidos de preto passaram a frequentar a terra, colocar armas em suas cabeças e os mandavam ir embora. “Sempre ameaçavam, falavam que a terra tinha dono e tivemos que largar tudo e deixar o nosso trabalho naquele lugar por ameaças. Ele mandava os capangas sempre para ameaçar.”
De acordo com ela, o fazendeiro chegou a ir até a propriedade e negociar com seu marido. “Mas ele estava sempre rodeado de capangas, encapuzados, que se passavam por policiais. Os outros moradores foram saindo e nós fomos resistindo até o final. Quem ia saindo, eles quebravam logo as casas com trator.”
No entanto, a resistência não durou para sempre e o medo da bala falou mais alto. Maria e sua família deixaram a terra, após terem suas plantações envenenadas. Ela conta que chegaram a pegar um cheque de R$ 8 mil passado pelo fazendeiro para que não passassem fome fora de suas terras. “A gente achou que a justiça ia devolver a nossa casa de volta, pois ali é terra da união. Mas infelizmente o município fechou os olhos para nós. Não nos ajudou. Nós corremos atrás de secretarias, mas fecharam os olhos para nós. O processo em Tucuruí fui arquivado, levamos para Marabá, mas até o momento não deu muita coisa.”
Com tristeza, Maria diz que ela e sua família sonham em voltar para casa. “Nós precisamos voltar para trabalhar, pois dependemos de ajuda dos filhos e do bolsa família para nos manter, isso ainda temos pela misericórdia de Deus. A minha casinha ainda está lá, mas a maioria já foi destruída, queimada. Nós queremos voltar para nossa terra.”
Créditos (Imagem de capa): Pedral do Lourenço - Reprodução Google
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